FLÁVIO ANSELMO, polemista e, acima de tudo, caratinguense
Flávio Anselmo, agora arrebatado aos céus, era um temível polemista. Ao impacto da morte do amigo e festejado jornalista e escritor caratinguense, pouco compreendido por muitos, lembrei-me da história do Brasil da República Velha onde imperava a polêmica como gênero literário.
Nos jornais da época, a coqueluche eram as grandes polêmicas envolvendo as estrelas da literatura e do jornalismo. Uma das mais decantadas, envolveu, imagine, a gramática e foi encerrada literalmente à bala. O político e diplomata Gilberto Amado matou a tiros, em plena avenida movimentada do Rio de 1915, seu polemista rival, o poeta Aníbal Teófilo, em duelo fatal. Tudo começou com uma mera colocação gramatical de Gilberto Amado, que Aníbal considerou mal redigida. Não foi capaz de perdoar ao adversário um erro de gramática, a má colocação de um pronome, a falta de uma crase ou um verso de pé-quebrado.
Apaixonado pelo esporte, Flávio Anselmo trocou a polêmica do Tribunal do Júri que preferiu nunca frequentar como advogado, pela polêmica na crônica esportiva. Deixando os microfones da Rádio Sociedade de Caratinga, com apenas 20 anos já estava Flávio Anselmo galvanizando a atenção da capital mineira, onde trabalhou em praticamente todas as principais emissoras de rádio e televisão e nos principais jornais. Desde a Rádio Itatiaia, onde começou como estagiário, passando pelo Diário de Minas e pela Rádio Inconfidência, seu fulgurante talento era conferido nas páginas do Estado de Minas ou na crônica esportiva do dia pela Rádio Guarani, TV Alterosa ou pela Transamérica.
Era Flávio Anselmo, com seu florete temperado no mais fino aço das forjas da Serra da Jacutinga analisando os principais momentos do futebol de Minas e do país, ora espicaçando um atacante que jogou mal, ora brandindo sua clava sobre cartolas corruptos no mundo do futebol.
Evocar a figura de Flávio Anselmo é lembrar o mundo do jornalismo, da cultura e da literatura. Ah, que delícia literária nos traz a paisagem brasileira dos tempos da República Velha, inimaginável nos dias de hoje. As escatológicas “face news”, baixarias e vilanias patrocinadas por autoridades de alto coturno das mídias digitais modernas, mostram a quantas andam a formação cultural e o gosto pela leitura. Na época, as polêmicas eram travadas entre Carlos de Laet e Camilo Castelo Branco, dois monstros sagrados da literatura brasileira. Entre Silvio Romero e José Veríssimo, himalaias da crítica literária.
Foi-se Flávio Anselmo e com ele um resto de beleza literária. O cronista e o ficcionista se superando. Em “Caraúna”, Flávio Anselmo se veste com a toga de Tomas Antônio Gonzaga, o poeta satírico das Cartas Chilenas. Com “O sorrido de Juliana”, dedicado à filha, Flávio nos traz cintilações do poeta árcade e neoclássico da Inconfidência Mineira, nos cantos de Dirceu a Marília.
Caratinga perdeu aquele que seria um razoável advogado, mas Minas e o Brasil ganharam um dos maiores nomes do jornalismo esportivo.
Os tempos são outros, as polêmicas também. Feliz o Brasil das polêmicas literárias, onde competidores da boa escrita e do vernáculo, defensores da Última Flor do Lácio de Olavo Bilac contra os bárbaros, eram homens da estatura de Machado de Assis, Rui Barbosa, Euclides da Cunha e outros do mesmo quilate.
Polêmico, mas qualquer que seja o lado, ou o conteúdo, em todo embate de ideias o estilo contundente, mas ao mesmo tempo cálido da mineirice brejeira de Flávio Anselmo de garoto batizado nas águas barrentas do Rio Caratinga, nas peladas do Fluminense e do Esporte Clube Caratinga, das tertúlias na Praça Cesário Alvim, na Avenida Benedito Valadares e Rua Raul Soares.
O caratinguense das polifonias, dos cantos orfeônicos da Catedral de São João Batista que herdou da religiosidade e das virtudes morais da casa paterna, 0o respeito mútuo, o louvor, a liberdade de pensamento e o apreço as diferenças, seguindo o dogma do velho ditado latino “No fim do jogo o pião e o rei vão pra mesma caixa”.
Mas não era só no campo do jornalismo esportivo, nos comentários do futebol, essa paixão nacional, que Flávio Anselmo ganhava vulto e dimensão. Também nas obras literárias que escreveu com apurado estilo, deixando a marca de Caratinga como enclave cultural do portal da Zona da Mata.
Cultuar o idioma insere-se em amplo projeto nacional de formação do brasileiro, para permitir o seu pleno crescimento como ser humano por intermédio da leitura, e torná-lo um cidadão com amplo horizonte cultural e profissional.
Um Dom Quixote de Cervantes a anunciar o apocalipse do Rio Caratinga, envenenado pelo esgoto e poluição. aide, ao inaugurar o prédio que hoje leva o seu nome: “O sonho é maior do que a realidade”.
Agora o vemos, ali está Flávio Anselmo, o polemista temperado pela serenidade do avô, cabelos e bigodes brancos, irradiando ao microfone o arcabouço de seu estofo moral, tal o Afonso da Maia do célebre romance de Eça de Queiroz. Do conselho de Platão: “Devemos aprender durante toda a vida, sem imaginar que a sabedoria vem com a velhice”.
Quantos amigos não gostariam de ter espalhado sobre o caixão de Flávio Anselmo gotas do perfume Idéal, da mesma forma que fizeram no esquife do poeta Aníbal Teófilo seus amigos que estavam ligados com ele por um pacto de honra segundo o qual, à hora de fechar o caixão do primeiro que morresse, os demais deveriam derramar-lhe sobre o coração um vidro inteiro de perfume Ideal de Houbigant. E assim foi feito no enterro do poeta morto pelo diplomata Gilberto Amado em razão da polêmica da gramática.
Porém, no instante trágico de contemplar as cinzas de Flávio Anselmo espalhadas sobre o Rio Caratinga, tal a tradição dos hindus no Rio Ganges, ia pensando justamente na frase do escritor italiano Carlo Lévi que diz o seguinte: “O futuro tem um coração antigo”.
Parou de bater, aos 78 anos, o tecido mole do antigo e apaixonado coração do caratinguense Flávio Anselmo.
Mauro Bomfim – jornalista, escritor e advogado – mb43712@gmail.com